Igrejas, Ditadura e Autoritarismo:

Sobre abusos e novas formas de resistência

Na Semana do Nunca Mais (que lembrou os 59 anos do golpe militar de 1964, neste 2023), o Coletivo Memória e Utopia, juntamente com Casa Galileia, o Instituto de Estudos da Religião (ISER), Koinonia – Presença Ecumênica e Novas Narrativas Evangélicas, promoveu o evento “Igrejas, Ditadura e Autoritarismo: sobre abusos e novas formas de resistência”. Com ele, as organizações parceiras buscaram alimentar a memória da relação das igrejas com este passado, que segue muito vivo no cotidiano do País, e as ações de enfrentamento desta realidade hoje.
O evento teve dois momentos: na noite de 31 de março, aconteceu uma roda de conversa sobre o tema geral, e na manhã de 1 de abril foi realizada uma caminhada pedagógica por pontos do centro da cidade do Rio de Janeiro relacionados ao tema.

 

Conversa permeada por emoções

A roda de conversa foi realizada na sede do ISER e contou com a participação de 72 pessoas do Rio de Janeiro e de cidades vizinhas. O programa permeado por momentos simbólicos e de forte emoção, foi aberto com a leitura de uma adaptação do poema “Estatuto do Homem”, escrito em Santiago, do Chile, em abril de 1964, por Thiago de Melo e publicado no livro “Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar” (1965) (clique aqui para ler).

Em seguida, foi proferida uma homenagem ao Bispo da Igreja Metodista Paulo Ayres Mattos, um dos colaboradores do Coletivo Memória e Utopia, morto por problemas cardíacos no final de 2022, uma das lideranças evangélicas que sofreu perseguição  da ditadura militar (saiba mais sobre ele aqui). A homenagem foi lida pela moderadora da roda de conversa Vera Lunardi e levou participantes a uma calorosa salva de palmas à memória do bispo (clique aqui para ler).

O pastor e sociólogo diretor do ISER Clemir Fernandes compartilhou com os/as presentes a memória desta organização que acolheu o evento, criada há quase 53 anos em plena ditadura militar, por lideranças remanescentes da Confederação Evangélica do Brasil e da Igreja Católica. Ao longo de sua existência o ISER reformulou suas ênfases e ações, e segue nos princípios que o originou baseados na afirmação das religiões como ator social significativo na defesa do direito à vida em todas as suas dimensões.

Permeado com canções que refletem profundamente o momento da ditadura militar, como “O bêbado e a equilibrista” (de João Bosco e Aldir Blanc), “Cálice” (Milton Nascimento e Gilberto Gil), “Que estou fazendo se sou cristão?” (João Dias de Araújo) e “Apesar de você” (Chico Buarque) (clique aqui para ler as letras), o programa teve um momento significativo que emocionou participantes. Na ocasião, foram lembrados os nomes de sete evangélicos e de cinco católicos (entre os 18) mortos e desaparecidos durante o processo de repressão à oposição, promovida pela ditadura militar, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (clique aqui para conhecer). Dez participantes trouxeram à roda de conversa a memória de cada um dos nomes, representando-os, como se eles estivessem ali contando sua história.

Magali Cunha

A pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade, integrante do Coletivo Memória e Utopia, Magali Cunha ressaltou o lugar destas pessoas e das demais sobreviventes que sofreram com as prisões arbitrárias, tortura e exílio, por causa de seu compromisso com a fé cristã, como representantes do grupo das igrejas que resistiu à ditadura e foi minoria. Houve ainda, segundo ela, duas outras atitudes das igrejas que prevaleceram: o silêncio com omissão e o apoio explícito, com publicização de palavras de suporte aos militares no poder e participação no sistema (integrantes do governo, do Judiciário conivente, dos órgãos de repressão e delatores).

Magali Cunha destacou o papel das lideranças cristãs como cardeal católico de São Paulo D. Paulo Evaristo Arns e do pastor presbiteriano Jaime Wright, na criação do projeto Brasil Nunca Mais, de denúncia da tortura, realizado com o apoio financeiro e logístico do Conselho Mundial de Igrejas (saiba mais aqui sobre o projeto).

​Fazendo a conexão da conversa com o tempo presente, o professor e assessor do ISER-Assessoria e das Comunidades Eclesiais de Base Ivo Lesbaupin refletiu sobre o desafio das novas formas de resistência, em tempos de predomínio da cultura das mídias sociais. Ele comparou a situação da impunidade dos perpetradores das crueldades impostas pela ditadura militar, por conta da Lei de Anistia acordada com o governo militar, com o que foi realizado pela Argentina, que desenvolveu processos de justiça e reparação, o que não permite que haja demandas por intervenções militares, como visto no Brasil desde 2013.

Ivo Lesbaupin, que foi um dos dominicanos que sofreu com a crueldade da repressão, com outros quatro companheiros da ordem católica (o livro e o filme Batismo de Sangue têm esta memória – veja mais aqui), alertou participantes da roda de conversa sobre o lugar das internet e das mídias digitais na propagação do ódio e do extremismo, que colocam em risco a democracia e a memória da ditadura, com os negacionismos propagados.

A roda de conversa foi encerrada com uma oração escrita pelo pastor batista Walter Rauschenbush, da corrente teológica do Evangelho Social no início do século 20, lida coletivamente (clique aqui para ver). A gravação em vídeo da roda de conversa, gentilmente coordenada pelo produtor de mídias Claudio Nunes, está disponivel no canal do Youtube de Memória e Utopia. 

Ivo Lesbaupin

A experiência por espaços instigantes

O segundo momento do evento “Igrejas, Ditadura e Autoritarismo: sobre abusos e novas formas de resistência” foi uma caminhada pedagógica por lugares da memória das igrejas relacionados à resistência à ditadura militar.

O ponto de partida foi o Edifício da Av. Erasmo Braga, 277 (Castelo), onde, no quinto andar, estava localizada a sede da Confederação Evangélica do Brasil (CEB), fundada em 1934, a partir dos esforços de cooperação e presença social liderados pelo pastor presbiteriano Erasmo Braga (saiba mais sobre ele aqui).  No momento da fundação eram quatro as igrejas articuladas na CEB: as Igrejas Presbiterianas do Brasil e Independente, a Igreja Metodista e a Igreja Episcopal. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana se tornou membro da CEB em 1959, e duas igrejas pentecostais – A Igreja do Evangelho Quadrangular e a Igreja  O Brasil Para Cristo – se filiariam nos anos 1960 (mais sobre a CEB aqui).

Uma das mais marcantes atividades da CEB foram as conferências de estudo, promovidas pelo Setor de Responsabilidade Social da Igreja, criado nos anos 50, a partir da seção brasileira da Comissão de Igreja e Sociedade, do Conselho Mundial de Igrejas. Foram três conferências, sendo a mais destacada a denominada “Conferência do Nordeste” (Recife, 1962), que teve o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” (saiba mais sobre ela aqui).

Os/as 35 participantes da caminhada pedagógica, ouviram de Magali Cunha sobre esta memória e dos abusos cometidos contra a CEB e seus líderes, quando a ditadura militar foi instaurada, tanto pela repressão do Estado quanto pelas lideranças das igrejas. O diretor do Setor de Responsabilidade Social o presbiteriano Waldo César e os dos departamentos de Juventude, o presbiteriano Rubens Bueno, de Ação Social, o congregacional Jether Ramalho e de  revistas de Escola Dominical, o presbiteriano Domício Mattos; o produtor e editor de textos o presbiteriano Carlos Cunha, entre outros da equipe da organização, sofreram duras perseguições, alguns foram presos. A CEB foi invadida pela polícia da ditadura e teve arquivos recolhidos e, a partir daí sua extinção foi iniciada.

Em conexão com o tempo presente, o grupo ouviu, no local, o pastor da Igreja Batista de Marapendi (Rio) Sérgio Dusilek expor sobre o fechamento da Igreja Batista no Brasil às questões sociais, o alinhamento com a ditadura e processos de perseguição a lideranças críticas a esta postura. Dusilek contou como o que a equipe da CEB sofreu no passado se reflete ainda no tempo presente, a partir de sua própria experiência. Ele foi atacado nas mídias sociais e tem sofrido, ainda hoje, discriminação e espaços eclesiásticos, por conta de ter participado de um ato em apoio à candidatura do atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022. O pastor relacionou suas ações ao seu compromisso de fé e afirmou manter-se firme nestes princípios.

Depois de passar pelo monumento à vereadora católica Marielle Franco (PSOL-RJ) cruelmente executada, junto com o motorista do carro que viajava, Anderson Gomes, e relacionar sua  história à ditadura ainda viva, os/as participantes seguiram para a Câmara de Vereadores (Cinelândia).

Na parada na Câmara de Vereadores, a professora integrante do Coletivo Memória e Utopia Nalu Rosa expôs sua própria experiência como evangélica ativista de direitos humanos desde juventude, tendo contribuído nas muitas manifestações em defesa da democracia que ocuparam aquele espaço. Depois falou dos políticos evangélicos que dedicaram sua vocação na esfera pública contra a ditadura e atuaram pela reconstrução da democracia durante o Congresso Constituinte de 1987-1992: a assembleiana, depois presbiteriana Benedita da Silva (PT-RJ) e o presbiteriano Lysâneas Maciel (MDB, PT, PDT).

Foto: Laura Monteiro

A relação com o tempo presente foi feita com o depoimento do jovem pentecostal Wesley Teixeira, que tem, desde a adolescência, se engajado em movimentos sociais por direitos. Ele tem dedicado seus esforços no campo da política institucional, tendo sido candidato a vereador e a deputado estadual nos últimos dois pleitos, no primeiro pelo PSOL e no segundo, pelo PSB (tendo alcançado a posição de primeiro suplente). Wesley Teixeira relacionou esta trajetória à sua fé e esperança em tempos melhores para as igrejas e para o Brasil.

Na caminhada para a estação do metrô, o grupo fez uma parada para conhecer o Monumento ao Nunca Mais. A obra é uma bandeira do Brasil “desconstruída” com estrelas afixadas no chão, ao lado, e homenageia os militares cassados por terem sido contrários à ditadura brasileira. O monumento fica localizado no largo da Cinelândia, em frente ao prédio do Clube Militar.

A caminhada pedagógica foi encerrada com uma visita à sede de Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço, no bairro da Glória, cujas lideranças que recepcionaram o grupo, a diretora Ana Gualberto e o assessor Rafael Oliveira, relacionaram a memória da organização à resistência das lideranças da Confederação Evangélica do Brasil à ditadura. Elas criaram o Centro Evangélico de Informação (CEI), em 1965, ampliado para Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), que em 1994 se reorganizou em três outras ONGs, uma delas, Koinoinia.  

Além de exporem uma síntese do que Koinonia realiza hoje, Ana Gualberto e Rafael Soares enfatizaram as produções de memória da ditadura publicadas nos 50 anos do golpe, em 2014 que se encontram no repositório Protestantes, Ditadura e Democracia. Neste espaço as publicações históricas do CEI e do CEDI podem ser encontradas, além do livro “Memórias Ecumênicas Protestantes no Brasil” e do documentário “Muros e Pontes: memória protestante na ditadura”, com os quais os participantes foram presenteados com as versões físicas.

A experiência foi concluída com indicações dos/as participantes, para as organizações promotoras do evento, da necessidade de continuidade desta proposta de se manter viva a memória da relação igrejas e ditadura em conexão com o presente, em especial, com atividades especiais no ano de 2024, que representará 60 anos do golpe militar.